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domingo, 1 de abril de 2012

Empréstimo viciado

Sem licitação, empresas não dizem quanto cobram para administrar os recursos do crédito consignado

ANGELA PINHO

EM FAMÍLIA Arialdo de Mello Pinho, secretário da Casa Civil do Ceará. Seu genro é dono da empresa contratada sem licitação para gerenciar o crédito dos funcionários (Foto: Natinho Rodrigues/O Povo)

Devo, não nego, pago quando puder”, diz o dito popular. Não com o crédito consignado. Promovido em 2004 como forma de aquecer a economia, ele é uma maneira relativamente segura de endividamento. O interessado toma empréstimo no banco e paga em parcelas descontadas automaticamente do salário. Como o risco de inadimplência é menor, os juros caem. Credores, devedores, todos ganham. Especialmente um seleto grupo de pessoas que viram no serviço uma mina de ouro. Em diversos locais do país, políticos, parentes e agregados têm conseguido contratos com governos estaduais e prefeituras para fornecer programas de computador que gerenciam os empréstimos dados a funcionários públicos. Além dos esquemas de favorecimento, as operações desse tipo colocam em risco o sigilo das informações financeiras e cadastrais dos tomadores de dinheiro.

O software usado nas operações de empréstimo consignado é um elemento pouco conhecido dessa modalidade de crédito. Ele funciona como intermediário entre os órgãos públicos em que os servidores trabalham e os bancos. A intermediação é necessária. Serve para informar ao banco quanto do salário do servidor ainda está disponível para empréstimo. Operadores ligados aos bancos, porém, listam pelo menos quatro problemas associados a essas operações.

Primeiro, não há regras para a contratação das empresas de software. Muitas prestam serviços para prefeituras e governos sem licitação. Segundo, também não há normas para a remuneração dessas empresas. Algumas ficam com um percentual das parcelas descontadas do salário dos servidores – normalmente entre 2% e 5%. Outras cobram um valor fixo. Terceiro, não há transparência nas operações. Quem arca com as parcelas nem sequer é informado sobre a existência dessas taxas, pagas compulsoriamente. O quarto problema é o risco de mau uso das informações sigilosas dos tomadores de empréstimos. Não há qualquer norma que regulamente a atuação das empresas de software, que passaram a ter acesso a dados pessoais ligados à remuneração dos funcionários.

Os funcionários não são informados de que pagam a conta das empresas de informática

O crédito consignado movimentou R$ 160 bilhões em 2011. Grande parte desse valor foi intermediado pelos softwares em empréstimos feitos por servidores públicos – que garantem a quitação por causa da estabilidade no emprego – e aposentados. Para fugir da necessidade de licitação, as empresas de software se beneficiam de uma peculiaridade do negócio. Como sua remuneração não é feita pelos órgãos públicos, mas pelos bancos (com o dinheiro do servidor), alguns governos e prefeituras argumentam não haver necessidade de um processo de concorrência para selecionar a prestadora do serviço. Da forma como o sistema foi montado, criou-se o pior dos mundos para o tomador do empréstimo: quem influencia a escolha das empresas de software são os governos e as prefeituras, enquanto o valor cobrado pelo serviço é negociado exclusivamente entre elas e os bancos. Os clientes só participam com a taxa.

Num mundo sem regras, as suspeitas de favorecimento começaram a pipocar. Na Paraíba, o sistema de crédito consignado é administrado pela MCF Administradora de Crédito e Cobrança, contratada sem licitação. Ela pertence ao grupo empresarial MCF, do qual faz parte o deputado federal Mario Feitoza (PSB-CE). A empresa nega qualquer influência do deputado para fechar o negócio, que se repete “em muitos outros Estados e municípios”. Afirma ainda que Feitoza não tem mais vínculo direto com a empresa. O deputado é membro do Conselho de Administração do grupo MCF, controlador da empresa de crédito. Em fevereiro, o Tribunal de Contas do Estado suspendeu temporariamente o contrato por entender que o processo de licitação era necessário.

Intermediários de sorte (Foto: Reprodução)

Em Goiás, a empresa contratada também sem concorrência para gerenciar o crédito consignado é a WMG. Seu dono é Marcelo Brenner, irmão do ex-gerente de tecnologia da informação do governo anterior. O site da WMG também está registrado em nome do irmão, Marco Brenner. Marcelo jura ser coincidência. Segundo ele, a WMG foi chamada porque fez uma proposta vantajosa ao governo. “Não existe nenhuma ligação do senhor Marco Brenner com minha empresa. Ele só registrou, a meu pedido, o domínio do site. Isso nada tem a ver com a propriedade da empresa, que está em meu nome”, disse por e-mail.

No Ceará, outra coincidência. Em 2009, o governo fez uma licitação para contratar uma empresa para administrar os empréstimos consignados. A vencedora, conhecida como ABC, contratou outra para prestar o serviço, de nome CCI. Chama a atenção o fato de o dono da CCI ser genro de um dos quadros mais poderosos do governo Cid Gomes (PSB): Arialdo de Mello Pinho, secretário da Casa Civil. O caso do Ceará pode ser ainda mais grave. Segundo denúncia encaminhada ao Ministério Público pelo deputado estadual Heitor Férrer (PDT), outra empresa controlada pela CCI, a Promus, fica com 19% de comissão sobre os empréstimos. Mello Pinho afirmou por intermédio de sua assessoria que sua Pasta não participou da licitação, realizada pela Central de Licitação da Procuradoria-Geral do Estado. A ABC não se pronunciou.

Não há nenhuma norma que garanta o sigilo dos dados manipulados pelas empresas
de software

Por tratar-se de um serviço relativamente novo, só recentemente os órgãos de controle começaram a olhar para as empresas de software que atuam no crédito consignado. Em 2011, o Tribunal de Contas de Rondônia determinou a suspensão do contrato do governo local com a Multimargem. A empresa, que funcionava numa casa simples de Porto Velho, fora contratada por decreto. O negócio lhe proporcionou um faturamento anual de R$ 500 mil, de acordo com o processo. O Tribunal entendeu que a licitação era indispensável. No julgamento, o relator do caso, Wilber Coimbra, também manifestou preocupação com a manipulação dos dados sigilosos dos clientes.

Por essas empresas passam informações preciosas, como os salários, os valores que os funcionários podem tomar emprestado e a quantidade de financiamento contratada. Muita gente no mercado pergunta por que o Banco Central (BC) não estabelece regras e passa a fiscalizar essas empresas. A explicação do BC: elas não realizam operações bancárias, como depósitos e empréstimos. Fica claro que a dívida no sistema de crédito consignado vai além do dinheiro. É de transparência.

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