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sábado, 2 de junho de 2012

Seis dias de terror na síria


O drama do repórter de ISTOÉ que conseguiu entrar em Homs, a cidade mais afetada pela guerra do ditador Bashar al-Assad, e acabou preso e torturado por militares

Klester Cavalcanti, enviado especial a Homs (Síria)

 Assista ao vídeo feito pelo repórter Klester Cavalcanti durante o caminho que o levaria da capital Damasco até Homs e em uma ponte entre a Síria e o Líbano, logo depois de ele ter sido expulso pelas autoridades sírias :
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VIOLÊNCIA
Rebeldes do Exército Livre da Síria mostram suas armas na vila de Al-Shatouria,
no noroeste do país; na foto menor, o rosto do repórter queimado com cigarro
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O cano do fuzil roçava na minha nuca. O soldado de rosto imberbe aparentava não mais de 21 anos. Pele morena, olhos apertados, nariz alongado. Parecia satisfeito em ter sob sua custódia um jornalista estrangeiro. Um “sahafi”, como se diz em árabe. Estávamos dentro de um táxi, no centro de Homs, a cidade mais afetada pela guerra que já dura quase um ano e três meses, na Síria. Eu e o motorista íamos na frente. O jovem soldado, atrás de mim, com o dedo no gatilho e o cano frio da arma a me incomodar. Era tarde do sábado 19. Havia pouco mais de uma hora, eu chegara a Homs num ônibus que saíra da capital, Damasco, três horas antes. Os check-points militares espalhados pelo caminho refletiam a tensão do país em guerra, tutelado pelo ditador Bashar al-Assad. Os números da ONU divergem dos do governo sírio. Mas as organizações humanitárias dão como certo que mais de dez mil pessoas já morreram nos confrontos iniciados em março do ano passado.

Apesar de ter recebido do governo sírio o visto de jornalista e de ter autorização oficial para portar todos os equipamentos que carregava comigo (celular, máquina fotográfica e filmadora), eu acabara de ser detido. Eles só falavam árabe. “No english”, repetiam a cada tentativa de diálogo. No momento em que fui detido, por volta das 16 horas, o homem que comandava a operação confiscou meu passaporte, meu celular, a máquina fotográfica e a filmadora. O motorista do táxi fez as vezes de tradutor até encontrarem o sargento, Yasin Hassan, que falava um pouco de inglês. Minha captura ocorreu no centro de Homs, uma das maiores cidades da Síria, com mais de 1,5 milhão de habitantes. Estava a pouco mais de um quilômetro do hospital onde meu contato, um ativista de direitos humanos, me esperava. Eu nunca chegaria lá.

Minha intenção em Homs era mostrar como está a vida na cidade que é o foco da resistência ao regime de Al-Assad e que, exatamente por isso, tem sofrido os ataques mais pesados do governo. Queria ver e relatar como os cidadãos de Homs vivem nesses dias de guerra. Se eles vão ao shopping, se a universidade (uma das mais importantes da Síria) está funcionando, se, ao menos em alguns bairros, bares e restaurantes estão de portas abertas, se os homens assistem ao futebol na tevê no fim de semana – sim, eles também adoram uma bola e até hoje falam de Romário –, se em alguma mesquita as preces a Alá continuam sendo realizadas. No percurso da rodoviária ao centro de Homs, pude ver um pouco de tudo isso. Nos bairros mais distantes da zona central, ainda há lojas e mesquitas abertas, muito trânsito, barracas de ambulantes pelas ruas. Mas a construção civil está totalmente parada. Chegando ao centro – onde a guerra é mais intensa –, pude observar prédios cravejados de balas, outros com as paredes destruídas por bombas, adolescentes de bermuda e camisa de times europeus – os preferidos são o Barcelona e o Milan – correndo com metralhadoras nas costas. São integrantes do Exército Livre da Síria (ELS), o braço maior da resistência a Al-Assad. Eu tinha entrevistas com dois oficiais do ELS marcadas para o domingo 20, articuladas pelo ativista que era meu contato em Homs.
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REBELIÃO
Soldados do ELS em combate na província de Idlib (acima). A oposição armada
ao governo de Bashar al-Assad também coordena atentados terroristas
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Depois de passar três horas sendo interrogado na guarita de um condomínio no bairro de Goutha, improvisada de posto militar, e de ter a minha mochila vistoriada quatro vezes apenas nesse local, um Renault Clio preto, sem placas, chegou com quatro homens vestindo roupas civis. Fui colocado no banco traseiro, entre dois homens armados com metralhadoras, e levado a um prédio público, com fotos de Bashar al-Assad em praticamente todas as paredes e janelas. Só mais tarde iria descobrir que se tratava de uma delegacia. Armas em punho – e sempre com o dedo no gatilho –, dois dos homens que estavam comigo no carro me levaram a uma sala no final de um corredor escuro. Tive a sensação de que estava sendo levado a uma sala de execução. Senti muito medo. Mas era um medo tranquilo. Até porque não adiantaria me desesperar naquele momento. Dessa sala, descemos por uma escada estreita, pela qual só passava uma pessoa por vez. Novamente, senti a ponta de um fuzil na minha nuca. Fechei os olhos e continuei descendo. Dei de cara numa porta de ferro, de 1,90 metro de altura, toda pintada de vermelho. Era a cela da delegacia. Fui interrogado por um homem pequeno, não mais de 1,60 m, de rosto enrugado, barba e bigode grisalhos. Pela postura dele e respeito que recebia dos outros, me pareceu ser o delegado.

Minha mochila foi novamente vasculhada e meu maior receio era de que encontrassem o cartão de memória com as fotografias e vídeos que eu tinha feito no caminho de Damasco a Homs e no percurso da rodoviária de Homs ao centro da cidade. Sempre que os militares e policiais me perguntavam se eu tinha algum cartão de memória, eu mentia. O cartão estava escondido dentro da caixa do fio dental. E, felizmente, passou incólume por todas as vistorias.

Após o interrogatório na delegacia – que durou pouco mais de uma hora e foi feito com a presença de um tradutor –, o suposto delegado escreveu um texto, em árabe, e mandou que eu assinasse. Eu me recusei, argumentando que não poderia assinar um documento policial sem saber o conteúdo. Nesse momento, ele deu alguns gritos para os seus comandados. Dois deles me seguraram pelos braços, sentado a uma cadeira, e um terceiro segurou minha cabeça com as duas mãos. O chefe da delegacia, então, pegou o cigarro que estava fumando – os sírios fumam o tempo todo – e ameaçou queimar meu olho esquerdo, caso eu não assinasse o documento. Não assinei. Ele aproximou a ponta acesa, até chegar a uns cinco centímetros do meu olho. Então, desviou o cigarro e queimou meu rosto. Temi que ele fosse mesmo me cegar e assinei o documento. Naquela noite, dormi algemado a um sofá. Passei a madrugada de olhos abertos, angustiado, imaginando que aquela seria a pior noite da minha vida. Meu inferno na Síria estava apenas começando.
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No domingo 20, fui levado a outra delegacia, num prédio bem maior, e novamente interrogado por outros homens. Durante todo o tempo, pedia para me deixarem fazer ao menos um telefonema, para avisar a minha família e/ou a redação. Mas não me permitiam. Depois de quase cinco horas nesse lugar – por volta das 16h –, um homem que falava inglês disse que eu estava livre. Senti um alívio gigantesco. Era mentira. Fui colocado num caminhão-baú, com dois grandes bancos de ferro e todo pintado de branco no interior. Comigo, entraram mais 43 homens, 20 deles acorrentados uns aos outros. Nosso destino: a Prisão Central de Homs. Estava numa penitenciária na cidade mais afetada pela guerra na Síria, no interior do país. Nunca senti desespero tão grande. No corredor em que fiquei, havia quatro celas. Esperei os outros presos entrarem e tentei explicar ao soldado que parecia ser chefe do lugar e entendia alguma coisa em inglês que devia haver algum engano em relação a mim. Na delegacia haviam dito que eu estava livre. Como poderia, agora, estar numa penitenciária? Mas o militar apenas me empurrou para dentro da primeira cela. Antes, porém, ele me perguntou: “What is your profession?” Acho muito pouco provável que ele não soubesse. Mas respondi. “Ah, sahafi!”, disse ele com um sorriso sarcástico. Só ali entendi. Meu crime era ser um jornalista estrangeiro observando a região mais tensa do conflito no país. No atual cenário, jornalistas não são bem-vindos na Síria. Muito menos em Homs.

Na cela, entre os 21 homens que estavam presos comigo, havia um que falava um pouco de inglês. Era Ammar Ali, 42 anos, dono de uma loja de roupas num shopping de Homs. Graças a ele, pude conhecer a história de vários outros prisioneiros. E muitas delas me forneceram justamente as informações que eu queria coletar na cidade, me ajudando a responder à pergunta: Como está a vida em Homs? Entendi, por exemplo, que muita gente que nunca cometeu um crime passou a se envolver em negócios ilícitos ou entrou para o ELS por força das circunstâncias. Ammar é um bom exemplo. Por causa da guerra, está há mais de sete meses sem abrir sua loja. Ninguém compra nada em Homs. Para manter a si e à mulher, passou a trabalhar com um contrabandista. Foi parar na cadeia. Outro exemplo do efeito da guerra sobre a vida das pessoas em Homs é Hussein Ibrahin, 20 anos. Rapaz de traços finos, fala mansa, tímido e olhos tranquilos, ele afirma que jamais se meteu em brigas. Há dois meses, um ataque das forças do governo no bairro de Hamadie explodiu a casa do seu vizinho, que ele conhecia desde os cinco anos e considerava um irmão. “Mataram a família toda: meu amigo, os pais dele e a irmã de 2 anos”, lembra Hussein. Revoltado, o jovem, que estuda na Universidade de Homs e sonha em ser professor, entrou para o ELS. Foi capturado no mês passado. Aos 51 anos, Ahmad Muhammad diz que sempre levou uma vida correta e pacata. Conta que era gerente de uma construtora que atua principalmente nas grandes cidades do interior da Síria, como Homs e Alepo. Com a guerra, as obras pararam e muita gente do setor foi demitida. Ahmad foi um deles. Casado, três filhos e fluente em francês, estava fazendo bico como tradutor para jornalistas franceses em Homs, quando foi preso sob a acusação de estar “colaborando com os inimigos”. Apesar das inúmeras vistorias em minha mochila, deixaram meu bloco de anotações e minha caneta.
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SEM TETO
Refugiados sírios a caminho da Turquia: estima-se que, desde o início dos conflitos,
em março de 2011, meio milhão de pessoas abandonaram suas casas
Na Prisão Central de Homs, tive de dormir e comer no chão por cinco dias, vendo baratas circulando ao meu redor. A comida era, invariavelmente, pão sírio com algum tipo de mistura que os presos preparavam num fogão elétrico de uma boca: ovo mexido, ovo cozido, tomate com cebola. E só. Para beber, água da torneira e chá. Muito chá. O cheiro na cela era terrível. Alguns presos tomavam banho todos os dias, usando o balde num cubículo de um metro quadrado no canto da cela com um buraco no chão que fazia as vezes de privada. Mas outros não se preocupavam com a higiene pessoal. E também havia o cigarro. Meus parceiros de prisão fumavam da hora em que acordavam até a hora em que iam dormir. Quase que constantemente, a cela era tomada por uma nuvem de fumaça. Havia, ainda, as explosões de bombas e os disparos incessantes que ouvíamos da cela. É que a Prisão Central de Homs fica a um quilômetro do epicentro dos confrontos na cidade. Assim, passávamos os dias e, principalmente, as noites, ouvindo metralhadoras e estrondos. Os mais fortes faziam o chão da cela tremer.

Eu não tinha noção se a minha família, o pessoal na revista e o governo do Brasil sabiam o que estava acontecendo comigo. Na quarta-feira 23, como não fiz o contato combinado previamente com a redação, a direção de ISTOÉ acionou o Itamaraty, que, por sua vez, contatou o governo sírio. Depois disso, ainda passei mais dois dias na prisão. Segundo a diretora de mídia internacional da Síria, Abeer al-Ahmad, nem o próprio governo sabia que havia um jornalista brasileiro numa penitenciária de Homs. Só após entrar em contato com a polícia da cidade eles descobriram onde eu estava e providenciaram minha libertação. Na manhã da sexta-feira 25, fui levado por um policial de Homs a Damasco, onde fiquei até a segunda-feira 28, aguardando que o governo sírio devolvesse meus pertences. E justamente no dia da minha libertação o mundo assistiu a mais um massacre das forças de Bashar al-Assad numa cidade do interior. Na sexta-feira 25, 108 pessoas morreram em Houla (perto de Homs), sendo 49 delas crianças. No mesmo dia, tanques de guerra entraram pela primeira vez, desde o início da revolta, em Alepo, segunda maior cidade da Síria e que até então apoiava o regime de al-Assad. O meu terror chegava ao fim. O da Síria, não.
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