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sábado, 4 de julho de 2009

15 ANOS DE BONANÇA

Como o real, lançado em 1994, tirou o Brasil da espiral dahiperinflação e o fez entrar num círculo virtuoso de desenvolvimento.No dia 1º de julho de 1994, uma sexta-feira, o Brasil acordou com uma nova moeda, o real. Depois de uma década de hiperinflação - vale dizer, de absoluta desordem financeira -, os brasileiros receberam as novas cédulas com ceticismo justificável. Naqueles dez anos, o dinheiro na carteira já havia mudado outras quatro vezes, sem que houvesse avanços reais na economia. A confiança no sucesso da nova medida econômica não era maior do que a depositada na Seleção Brasileira de Futebol, que disputava sem brilho a Copa do Mundo dos Estados Unidos e, três dias antes, havia enfrentado a Suécia, não obtendo mais que um empate apertado. Mas, assim como a seleção, que acabou conquistando o tetracampeonato numa final dramática contra a Itália, o real foi adiante. O plano que antecedeu seu lançamento, costurado pelo então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, combinou perícia técnica e arte política. Essa última permitiu aprovar no Congresso todas as medidas legais que se fizeram necessárias. O achado técnico foi a criação de um indexador único, a URV, que fez convergir aos poucos todos os preços da economia - de tal forma que a nova moeda, ao nascer, refletia de fato o valor das coisas. Na semana passada, o real completou quinze anos como símbolo de um Brasil diferente: o Brasil da estabilidade, no qual frenéticas remarcações de preço ou confiscos de poupança são apenas memórias de um caos distante.
Quinze anos é tempo suficiente para que toda uma feliz geração de brasileiros ignore, no dia a dia, qual o efeito da inflação descontrolada. E que descontrole! O Brasil entrou para a literatura econômica por ter um dos casos de hiperinflação mais impressionantes da história. Entre janeiro de 1980 e junho de 1994, a inflação acumulada no país, medida pelo IPCA, foi de 10,5 trilhões por cento (ou 10 500 000 000 000%). A maior inflação anual foi registrada em 1993, quando o índice chegou a 2 477%. A cada mês, a moeda perdia praticamente metade do seu poder de compra. Qualquer planejamento, fosse no âmbito das famílias, fosse no das empresas, se tornava impraticável. Esse é um tipo de incerteza que não se mede só em números: ela envenena a confiança, pois impede as pessoas de olhar com otimismo para o futuro. Num livro recém-lançado no Brasil, As Consequências Morais do Crescimento Econômico, o americano Benjamin Friedman, professor da Universidade Harvard que estudou detidamente a história de quatro países - Estados Unidos, França, Inglaterra e Alemanha -, mostra que períodos prolongados de turbulência econômica minam outros pilares da sociedade. "As consequências podem ser muito ruins em campos que parecem estar distantes da economia, como a luta por instituições democráticas ou a propagação de valores como a tolerância e a igualdade", diz Friedman. Não há dúvida de que, em mais de um sentido, a conquista da estabilidade trazida pelo real fez avançar a civilização no Brasil.
Não foi simples colocar o real de pé. A costura do plano econômico teve início depois que Fernando Henrique Cardoso, então ministro das Relações Exteriores, foi convidado pelo presidente Itamar Franco, que havia assumido o governo depois do impeachment de Fernando Collor, a conduzir a pasta da Fazenda, em maio de 1993. Seguiram-se meses de debates internos, envolvendo alguns dos mais talentosos economistas do país, como André Lara Resende, Edmar Bacha, Gustavo Franco e Pedro Malan. Traçavam-se as linhas gerais do programa, ao mesmo tempo em que se buscava o apoio mínimo necessário para aprovar as reformas no Congresso.
O primeiro passo veio em agosto de 1993, com a substituição do cruzeiro, em circulação desde março de 1990, pelo cruzeiro real. Mas o preâmbulo indispensável para a criação da nova moeda foi mesmo a adoção da unidade real de valor (URV), em março de 1994. Ela foi a ferramenta que permitiu efetivar a transição de uma moeda desacreditada para uma forte. Mesmo após a adoção do indexador, e com a data do lançamento efetivo do real, em 1º de julho, aproximando-se, a equipe econômica ainda não tinha segurança absoluta sobre vários aspectos do plano. Em junho, quando a maior parte dos brasileiros queria saber apenas da Copa dos Estados Unidos, a equipe de luminares passava dias inteiros trancada em salas de reunião, imersa em debates sem fim. Um dos pontos mais polêmicos era a questão cambial. Decidiu-se então pela paridade com o dólar, para que a nova moeda tivesse a necessária credibilidade inicial (a flutuação só viria em 1999, depois da crise mundial de 1998 e de um pacote de salvamento do Fundo Monetário Internacional). O lançamento do real exigiu também um planejamento logístico inédito no país, para a distribuição, em todo o território nacional, das novas cédulas e moedas. A Casa da Moeda foi posta a trabalhar em capacidade máxima, mas temia-se que mesmo isso não fosse suficiente, de acordo com as projeções dos estatísticos. Chegou-se a encomendar a impressão de notas no exterior. Isso porque os bancos ficariam abertos nos fins de semana para a troca do dinheiro. A substituição imediata foi, aliás, uma diferença do real em relação às mudanças de moeda anteriores - contribuiu para que ele fosse incorporado mais rapidamente - e com mais força - à vida dos brasileiros.
A estabilidade econômica teve o mérito de fazer com que os cidadãos voltassem a acreditar na economia do país e no seu dinheiro. "Com o real, o Brasil ganhou confiança. Prova disso é o fato de hoje não haver mais contestação a respeito da necessidade de uma moeda estável", afirma o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. "Aprendeu-se que a moeda é um símbolo importante porque ela reflete o estado da nação. Quando a moeda é estável, a confiança brota."
Enquanto imperava o caos econômico, não havia noção do valor relativo das coisas. Sem previsibilidade, ninguém se arriscava a fazer investimentos produtivos, e o potencial de crescimento ficava represado. "Depois do real, o poder de compra dos salários foi preservado. Os consumidores puderam comparar preços e se programar. Os investidores ampliaram seus horizontes. Os governos começaram a entender as próprias contas", diz Pedro Malan, que era presidente do Banco Central na época do lançamento do real e no ano seguinte, já no governo FHC, assumiria o Ministério da Fazenda.
A hiperinflação também concentrava brutalmente a renda no país, porque eram os pobres, sem ter como defender seus rendimentos em aplicações rentáveis, os que mais sofriam, enquanto os ricos ganhavam dinheiro fácil no sistema financeiro. O fim do chamado "imposto inflacionário" traduziu-se numa significativa elevação de bem-estar para as famílias, sobretudo as mais carentes. Milhares de pessoas subiram na hierarquia das classes sociais. A classe C tornou-se a principal camada: deixou de representar apenas 31% da população, em 1993, para alcançar 47%. Nesse mesmo período, a proporção de miseráveis minguou de 35% da população para 18%, em 2007.
Segundo Armínio Fraga, que presidiu o Banco Central de 1999 a 2003, o sucesso do real foi essencial também para restabelecer o respeito internacional pelo Brasil. "O país era visto, com justiça, como um lugar caótico, no qual havia ocorrido uma sequên-cia de planos malsucedidos e que vinha de moratórias da dívida externa. Era um país que não conseguia crescer", afirma Fraga. "Isso mudou. A inflação está relativamente baixa, o Brasil tem capacidade de crescer mais e de maneira mais justa, distribuindo renda. Isso mexeu com a autoestima dos brasileiros, o que foi muito positivo."
O real inaugurou um período de reformas institucionais, sem as quais a moeda talvez houvesse naufragado, como suas antecessoras. Entre outros avanços, houve a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, as privatizações e o saneamento do sistema financeiro. Fundamental, ainda, foi a autonomia operacional dada ao Banco Central, que pôde, nesses últimos anos, combater a inflação de maneira técnica e sem se dobrar a pressões políticas.
Isso significa que a estabilidade veio para ficar e não existe mais risco de retrocesso? Responde Fernando Henrique Cardoso: "Acredito que sim. Mas não há milagre. A moeda permanecerá estável enquanto formos capazes de manter o tripé: metas de inflação, câmbio flutuante e, sobretudo, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Se o próprio governo do PT, que foi tão combativo ao plano, o preservou, acho difícil qualquer mudança no futuro. Mas o próximo presidente terá de lidar com questões urgentes, como o controle da frouxidão fiscal dos últimos anos e o estímulo aos investimentos em infraestrutura". O ex-presidente do BC Gustavo Franco considera que a estabilidade traz consigo um desestímulo para que governos mais populistas - e, por consequência, mais irresponsáveis - sejam eleitos no Brasil. "A estabilidade macroeconômica afasta do horizonte rupturas, maluquices, invencionices. Atualmente, governo e oposição não discordam da política monetária e fiscal. Isso é característica de toda e qualquer democracia, e sinal de que o Brasil se tornou mais maduro", afirma Franco. Já Armínio Fraga é ligeiramente mais reticente: "O país deu uma guinada positiva, e a probabilidade de ocorrer um retrocesso relevante diminuiu bastante. Mas um país com o nosso histórico não pode relaxar. O processo de reconstrução institucional ainda está em andamento. O Brasil ainda permanece longe de atingir seu potencial pleno, mas não vejo nenhuma disposição de encarar - nem ao menos discutir - as reformas necessárias. O país, infelizmente, parece só se mover e fazer reformas difíceis quando está na beira do abismo".
Destravar as reformas em plena bonança, e não equilibrando-se no cadafalso, é o desafio que o Brasil tem de encarar agora. Derrotada a inflação, a agenda precisa se voltar quanto antes para o estímulo ao crescimento duradouro, por meio de uma reforma tributária que desonere a sociedade, e para a resolução das mazelas sociais - entre elas, os níveis ainda elevados de pobreza, educação precária e criminalidade. Essa é uma disputa que o Brasil precisa ganhar o quanto antes.

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