Sarney se une a Renan e a Collor no comando de umatropa de choque que ameaça e intimida. Se essa trinca prevalecer, as instituições vão regredir décadas e anularavanços duramente conquistados pela sociedade brasileira.É comum comparar a história a um trem que sempre avança indiferente aos erros e vacilações dos homens. De um político ou partido que deixa passar uma oportunidade ou ignora o progresso a sua volta diz-se que perdeu o "trem da história". Apesar de o século XX ter demolido na prática e na teoria as ideias de Karl Marx, muitas sobrevivem como dogmas religiosos, entre elas a de que a marcha da história é inexorável e sua força esmagadora empurra para o futuro todas as formas de organização da sociedade. No mundo real, os rumos do trem da história dependem muito mais da vontade, dos interesses e das convicções do maquinista. O trem pode estancar e pode até dar marcha a ré. O que se está vendo em Brasília nos dias atuais é uma marcha batida do comboio político rumo ao passado.
Voltam as práticas coronelistas de intimidação, chantagem e produção de dossiês. Volta o "senador biônico", a teratogênica figura do parlamentar sem voto criada pela ditadura militar e agora reencarnada nas figuras dantescas dos parlamentares sem voto - os suplentes. Seria apenas um escárnio, mas a presença deles no Senado é transubstanciada em deboche quando a qualquer um deles são entregues comissões de assuntos totalmente alheios a sua prática política - caso flagrante atual da Comissão de Ética confiada a um certo Paulo Duque. Na certeza de que sua popularidade o limpará de toda a sujeira, volta o "presidente teflon", pronto a adular por comodismo e excesso de esperteza as forças políticas mais retrógradas, clientelistas, fisiológicas e corruptas do país. Volta o topa tudo por dinheiro. Voltam José Sarney, Fernando Collor e Renan Calheiros, que, fosse mesmo a história um trem-bala disparando rumo ao futuro, já teriam desembarcado no século passado. Pois não é que são hoje os maquinistas da composição?
A cena do presidente do Congresso, senador José Sarney, deixando o plenário ladeado por Fernando Collor e Renan Calheiros - seus dois mais novos e fiéis aliados - é o símbolo mais evidente desse processo de volta ao passado. Sarney, um político de biografia controversa, transferiu a faixa presidencial a Fernando Collor de Mello, em 1990, depois de humilhado por ele na campanha presidencial. Collor se referia a ele como ladrão e corrupto. Essas eram as ofensas menores. Em 1992, a inversão: Sarney participou ativamente do processo de impeachment de Collor, afastado da Presidência exatamente por corrupção. O terceiro personagem, o senador Renan Calheiros, é aquele ex-líder de Collor, que depois abandonou o governo denunciando o ex-chefe por... corrupção. Em 2007, foi a vez de Renan renunciar à presidência do Senado, acusado, entre outras coisas, de... corrupção. O fato de os três terem acertado em cheio no julgamento que faziam uns dos outros no passado se soma agora ao fato de estarem juntos do mesmo lado. Nada mais natural. O que não é natural é eles estarem no comando da vida parlamentar brasileira. Os três são peças essenciais para entender o atual processo de mortificação do Congresso.
Há seis meses, José Sarney tenta se defender de denúncias que o envolvem em nepotismo, favorecimento de amigos e parentes, contas secretas no exterior, desvio de recursos públicos e irregularidades administrativas. Pressionado a deixar o cargo, ele decidira se afastar do comando do Senado, e chegara a comunicar isso ao presidente Lula, ao se sentir abandonado pelo governo e pelo PT. Foi quando entrou em cena a tal "tropa de choque", com seus métodos heterodoxos de fazer política à base da ameaça e da chantagem. Após ouvir de Collor e Renan - que, depois das acusações mútuas, acabaram se reconciliando - que o PT, partido do presidente Lula, iria lhe garantir a permanência no cargo, Sarney reconsiderou sua decisão. De onde vinha a certeza? "O governo sabe que a CPI da Petrobras pode seguir o mesmo caminho da CPI dos Correios. Em véspera de eleição, ninguém vai querer isso", ponderou Renan. A CPI da Petrobras foi criada pela oposição para investigar supostas irregularidades na estatal. O PMDB, partido de Renan e Sarney, controla a comissão. Ou seja: o PMDB, para garantir sustentação política a Sarney, chantageou o governo. Lula continuou trabalhando pela permanência de Sarney, e o PT se recusou a assinar uma carta em que vários partidos pediram seu afastamento.
O jogo bruto para garantir a permanência de Sarney no cargo começou no domingo à noite, quando Sarney desembarcou em Brasília, vindo de São Paulo, onde acompanhava um tratamento de saúde de sua mulher, Marly. Ao chegar à base aérea, foi recepcionado por Renan, pelo senador Gim Argello (PTB-DF) e pelo ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, responsável hierárquico pela Petrobras. Foram para a casa de Sarney traçar a estratégia de resistência, definida em cinco pontos:
• ameaçar o governo com a CPI da Petrobras;
• acuar a oposição e os governistas que insistissem no "Fora Sarney" com denúncias de irregularidades;
• escalar uma tropa para atacar os responsáveis por qualquer discurso anti-Sarney;
• arquivar todas as representações contra Sarney no Conselho de Ética do Senado; e
• abrir um processo contra Arthur Virgílio, líder do PSDB, como forma de constranger os opositores.
Para colocar em prática o plano de "ameaçar", "acuar", "atacar" e "constranger", a tropa peemedebista recebeu apoio de petistas proscritos, como os mensaleiros José Dirceu e João Paulo Cunha, que faziam o papel de leva e traz do governo. Na reunião política de segunda-feira, Lula tratou abertamente do tema com seus ministros. A preocupação com a CPI da Petrobras dominou as três horas do encontro. Ao final, diante das ameaças do PMDB, decidiu-se que o melhor era cerrar fileiras na proteção a Sarney. Não com discursos ou manifestações públicas, que não têm função prática e só servem para desgastar Lula, mas com ações dentro do Congresso que impeçam o desembarque do PT. Deu certo. Apenas três senadores do PT assinaram individualmente a carta pedindo o afastamento de Sarney - Tião Viana, Flávio Arns e Augusto Botelho. Outra ação do governo foi evitar que o PT recorresse do arquivamento dos processos contra Sarney no Conselho de Ética. Os recursos foram assinados apenas pelos partidos de oposição. Em troca da lealdade de Lula, o PMDB cumpriu sua parte na primeira reunião da CPI, na qual o relator, Romero Jucá (PMDB-RR), apresentou um plano de trabalho com poucas brechas para investigações que podem comprometer o governo.A estratégia da tropa foi seguida à risca. Em discurso no plenário, o senador Pedro Simon, do PMDB, pediu o afastamento de Sarney. Foi interpelado por Renan Calheiros com insinuações maldosas e atacado com grosseria por Fernando Collor. "São palavras que não aceito! Quero que o senhor as engula e as digira como achar conveniente", bradou Collor. "Estou no Senado há mais de trinta anos, desde a ditadura. Nunca vi nada semelhante", disse depois Simon. A truculência sempre fez parte do DNA da dupla Collor-Renan. Na quarta-feira passada, Sarney subiu à tribuna para defender-se das acusações que já causaram a apresentação de quinze pedidos de cassação no Conselho de Ética. Em 48 minutos de discurso, caiu em várias contradições (veja o quadro). Sem explicar nada, disse que não renunciaria.
O grande vexame, porém, ainda estava por vir. Minutos depois do pronunciamento de Sarney, outro personagem da tropa entrou em ação. Paulo Duque (PMDB-RJ), presidente do Conselho de Ética, arquivou todas as representações contra Sarney. Perguntado sobre o que a opinião pública acharia de sua decisão, o parlamentar respondeu em tom de deboche: "Eles vão achar que sou lindo! Que estava muito bonito aqui hoje". Dando sequência ao plano elaborado, o PMDB representou no Conselho de Ética contra o senador Arthur Virgílio, que mantinha em seu gabinete um funcionário que morava no exterior. A medida provocou um deprimente espetáculo. "Senador Renan, não aponte esse dedo sujo para mim", disse o senador Tasso Jereissati, do PSDB. "Seu coronel de merda", esbravejou o maquinista do trem que conduz o Senado brasileiro de volta à lei do cangaço.
"O país vive uma transição de uma sociedade arcaica e rural para uma sociedade moderna e de massas. As instituições deveriam dar o arcabouço democrático desse avanço. Mas há um desequilíbrio causado pelos políticos que ainda agem movidos pelo patrimonialismo, com uma falta clara de consciência do que é público e do que é privado", afirma Luis Aureliano Gama de Andrade, professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais. Para o professor Marco Antônio Carvalho Teixeira, da Fundação Getulio Vargas, o Senado não só parou no tempo como também retroagiu: "A sociedade avançou, as instituições avançaram, mas o Senado voltou aos tempos de Collor na Presidência. Os mesmos personagens e os mesmos métodos". Até o ex-ministro José Dirceu, o chefe do mensalão, ressurgiu para apoiar Sarney. Há quem enxergue na crise uma janela de oportunidade para uma ampla reforma que resgate a credibilidade do Senado. "Para que ocorra essa modernização é essencial a saí-da da Mesa Diretora e do presidente Sarney", diz o cientista político Marcus Figueiredo, do Iuperj. Na semana passada, senadores petistas procuraram o chefe de gabinete do presidente Lula, Gilberto Carvalho, para reclamar do constrangimento causado no partido com a aproximação entre Lula e Collor. Os dois chegaram a se encontrar em audiência privada na terça-feira. A reunião não constava da agenda presidencial. Oficialmente, tiveram uma civilizada conversa sobre política internacional e se despediram com um afetuoso abraço.
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