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domingo, 6 de maio de 2012

Cabeças a prêmio


Mônica Manir, de O Estado de S. Paulo
Diz que foi por R$ 50 mil que sete perderam a vida em Doverlândia. O planejado – suspeita-se – era matar um só, Lázaro de Oliveira Costa, proprietário de terra e ex-presidente do Sindicato Rural da cidade goiana. Mas a degola sobrou para seu filho Leopoldo, para um vaqueiro e para dois casais que estavam na fazenda errada e na hora errada, nesse crime de pistolagem que aterrorizou o noticiário desde sábado retrasado, 28 de abril.
Aparecido Souza Alves, acusado de participar da chacina de sete pessoas em Doverlândia, é algemado - Sebastiano Nogueira/O Popular
Sebastiano Nogueira/O Popular
Aparecido Souza Alves, acusado de participar da chacina de sete pessoas em Doverlândia, é algemado
Até agora apenas um assumiu o assassinato: Aparecido Souza Alves, moço de 22 anos, pego em flagrante no dia seguinte com um celular e uma carabina que pertenciam a Lázaro, mais roupas e um par de tênis tingidos de sangue. Aparecido dedou Alcides do Supermercado, futuro sogro de Leopoldo, como mandante da chacina e apontou um sobrinho do fazendeiro e um pistoleiro como seus comparsas. Alcides e o sobrinho foram presos, mas negam qualquer centavo de participação.
Se o assassinato tem mandante, mandado, vítima e dinheiro envolvidos, eis um crime de pistolagem, diz César Barreira. Estudioso dos crimes por encomenda, nome inclusive de um livro seu, ele explica que um é sinônimo do outro, mas que ambos estão tomando forma difusa nos últimos tempos. “A pistolagem era típica de disputas por terra e voto, porém hoje também serve para resolver conflitos com vizinhos ou para cobrar pequenas dívidas.”
O pistoleiro mudou de perfil – “qualquer pirangueiro pode ser um” –, o cavalo foi trocado pela moto, o meio rural foi engolido pelo urbano e surgiu até um corretor na história. No entanto, a impunidade, a intolerância e a banalização da vida continuam presentes nesse tipo de crime que vigora no Brasil desde o século 19 e que César Barreira, sociólogo cearense, professor da Universidade Federal do Ceará e coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da mesma universidade, reconstitui a seguir.
Quão comum é o crime de pistolagem no Brasil?
Mais que falar da frequência com que acontece, acho importante definir crime de pistolagem. Do ponto de vista sociológico, o crime de pistolagem tem personagens bem definidos: um deles é o mandante ou autor intelectual; o outro é o pistoleiro ou autor material do crime. A vítima também não é qualquer vítima. Ela sempre faz parte de alguma disputa. Esse crime tem, então, esses três vértices.
Crime de pistolagem é o mesmo que crime por encomenda?
São a mesma coisa. Todo crime de pistolagem é fruto de um acordo entre uma pessoa que paga a ação e outro que a executa.
Temos visto mais de um mandante e mais de um pistoleiro. A pistolagem está mudando de feição?
Sim, sua natureza mudou bastante ao longo do tempo. No Brasil, esse crime ocorria com certa frequência até o final do século 19, e no início do século passado também era mais ou menos importante. Mas ele volta com força na década de 80, quando começam a ser conhecidos casos de crimes por encomenda ligados à liderança no campo. Dois deles se tornaram nacional e internacionalmente famosos, e são paradigmáticos para definir esse tipo de assassinato: o do Chico Mendes, líder no Acre, morto em 1988, e o da camponesa Margarida Alves, da Paraíba, baleada em 1983. Margarida comandava todo um trabalho nos sindicatos no interior do Estado, principalmente na região de Guarabira. Lutava pelo direito dos trabalhadores rurais. Ficou muito conhecida e foi muito perseguida pelos proprietários de terra. Um deles contratou um pistoleiro para matá-la.
Nessa época políticos também eram muito visados, não?
Sim, teve um caso conhecido no Estado de Alagoas em que uma pessoa que ficou em primeiro lugar na suplência mandou matar um deputado para que pudesse assumir o cargo. Isso ainda acontece, mas o fato é que na década de 80 o crime por encomenda se vinculou basicamente a duas grandes questões: a terra e o voto. As pessoas foram percebendo claramente quem eram os mandantes. E os pistoleiros ganharam fama, de certa forma se valorizaram, para executar esses crimes.
Como assim?
Eles foram sendo conhecidos, conquistaram terreno com suas habilidades pessoais. Um pistoleiro mais bem preparado era contratado para executar crimes que exigiam mais habilidades. O cálculo para se pagar um pistoleiro era racional e se baseava muito no cacife da vítima. Um bispo, por exemplo, era bastante valorizado na cotação.
Os preços pagos são em geral altos ou, dependendo do caso, o assassino aceita fazer o serviço por um valor simbólico?
Nas décadas de 80 e 90, os preços eram altos, correspondiam a um, dois ou mais salários mínimos. A comparação com os dias de hoje fica um pouco difícil não só porque houve mudança da moeda, mas porque, no início dos anos 2000, o crime por encomenda se diversificou. Tivemos uma mudança no mandante, no pistoleiro, na vítima e nos motivos. Hoje a pessoa resolve dessa forma um conflito com um vizinho ou pequenas dívidas econômicas com o devedor. Acompanhei o caso de uma pessoa aqui em Fortaleza que fez um conserto no carro e não pagou o dono da oficina. O dono da oficina contratou uma pessoa para matá-lo. O mandante também não é mais apenas o grande proprietário rural nem o político. É como se a característica do crime por encomenda tivesse se tornado difusa.
Por que ficou difusa?
Em primeiro lugar, por causa da banalização da vida. Em segundo porque não é verdade que a cordialidade seja nossa característica. Os conflitos pessoais no Brasil são muitas vezes resolvidos com violência, é a justiça feita com as próprias mãos. As pessoas não acreditam no Poder Judiciário e na segurança pública, aí resolvem o problema dessa forma. Por isso a figura do mandante mudou. Temos pequenos comerciantes, moradores da mesma rua...
O que mudou na figura do pistoleiro?
Eles já não são mais aquelas pessoas lendárias e leais ao mandante. Como se diz na gíria popular, qualquer pirangueiro pode ser pistoleiro. Pirangueiro é a pessoa destituída de valores. Antes, quando eu entrevistava os delegados, eles diziam: “Professor, nós sabemos quem cometeu aquele crime pelas características de como foi cometido”. Hoje não. Tínhamos no século passado o pistoleiro tradicional, ligado diretamente à agricultura, que matava dentro da redondeza de uma propriedade e era protegido pelo dono da terra. Depois vemos surgir o matador free-lancer, que não tem a pistolagem como profissão. Pode ser um trabalhador, é um assassino ocasional. O terceiro tipo é o pistoleiro moderno, que mora na periferia das grandes cidades, nas cidades-dormitórios, normalmente sem contato com o mandante porque existe um intermediário.
Esse intermediário tem nome?
Tem: corretor da morte. É um homem dos seus 50 anos, de classe média ou baixa, normalmente ex-policial, que contrata as pessoas na periferia das cidades ou então em cidades do interior, feiras livres, bares. Às vezes encontramos ex-pistoleiros na função de corretor da morte, mas isso é raro de acontecer. Eles têm vida curta.
Os pistoleiros conseguem se estabelecer em algum lugar ou são nômades?
São nômades, porque geralmente são contratados num Estado para cometer o crime em outro. Por isso acabam constituindo várias famílias. Logo depois do assassinato também precisam ficar um pouco escondidos, e aí entram os mandantes novamente, possibilitando a essa pessoa fazer bicos como caminhoneiro, entregador de mercadoria, até desviar a atenção da polícia e o crime cair no esquecimento.
O estilo de matar mudou em relação ao pistoleiro tradicional?
Sim, mudou bastante. Antes, quase todos os crimes de pistolagem eram cometidos em cima de um cavalo, e os assassinos usavam rifle grande, aquele papo-amarelo. Hoje os assassinos surgem de moto, o capacete funciona como disfarce e a arma usada é um revólver.
O crime em Doverlândia foi com degola. Ele foge do padrão?
Foge. Os pistoleiros com quem conversei diziam preferir que as vítimas tivessem uma boa morte. Para eles, a boa morte é um tiro certeiro, a pessoa não sofreria muito. A degola foge do lugar-comum porque os pistoleiros afirmam ser corajosos, não valentes.
Qual a diferença?
Corajoso é o que tem coragem para matar, valente é o que disputa com peixeira, usa faca, enfrenta o outro de peito aberto. Eles dizem ser a mão armada do mandante porque o mandante não tem coragem de fazer o serviço. Mas não são valentes, porque o valente enfrenta a pessoa. Esse caso de Goiás mistura vários aspectos da pistolagem. Usaram o revólver para intimidar as pessoas e a faca para degolar. A faca o pistoleiro não usa – ou não usava.
Também estupraram uma das vítimas. O estupro é coisa comum na pistolagem?
Não é. Os pistoleiros não costumam ter relação com esse campo da sexualidade. Cometem um crime e saem.
Entre os suspeitos, há dois ex-policiais. Não fica claro ainda se são corretores da morte, mas a presença de policiais envolvidos com o crime da pistolagem é recente?
Não é recente, não. Na década de 80 encontrei muitos. Um disse que era pistoleiro e continuaria nesse crime porque era a única maneira de sobreviver. Sabia que tinha muitos inimigos pelo fato de ter prendido várias pessoas. No Estado de Alagoas, em 1994, teve até uma CPI da Pistolagem, e nessa CPI apareceu claramente o envolvimento de ex-policiais.
O que o senhor apreendeu dessa CPI?
Encontraram três dados que me chamaram a atenção: um é essa característica urbana, outro é a presença forte do corretor da morte e um terceiro é que a pistolagem existe em todo o Brasil. São Paulo mesmo tinha um índice muito elevado no Estado.
Há uma CPI da Pistolagem em ebulição na Assembleia Legislativa do Maranhão, motivada especialmente pelo assassinato do jornalista Décio Sá no dia 23 de abril. Chamou atenção nesse assassinato o fato de o matador aparecer de cara limpa no restaurante onde Décio estava. É sinal de certeza de impunidade?
É, tranquilamente, o que de certa forma perdura em homicídios de todo tipo no Brasil, cujas elucidações não chegam a 10%. Na década de 80, não existia um único mandante preso. O mandante do assassinato do Chico Mendes foi preso, mas logo em seguida solto. No caso da Dorothy (Stang), houve um grande avanço. Não demorou muito para o fazendeiro ser condenado. Ele depois foi solto, mas condenado novamente.
No Maranhão, falou-se do temor da volta do crime de pistolagem ao Estado, como se tivesse desaparecido em algum momento.
Isso não é verdade. Ocorre que a pistolagem é muito cíclica. Sobe e desce como uma onda. Acho que isso vem da classificação que a própria imprensa dá aos crimes. Fiz um estudo mostrando que, a partir de um assassinato rotulado pela imprensa como de pistolagem, vários outros foram classificados assim, embora nem todos o fossem. Por outro lado, pode existir o efeito multiplicador.
O senhor reservou um capitulo inteiro sobre literatura de cordel no seu livro Crimes por Encomenda, mas concluiu que o pistoleiro aparece pouco ali. Por quê?
A figura do pistoleiro existe no cordel. Tem o pistoleiro invisível, o pistoleiro bom, mas não é tão comum que ele seja retratado. Pra mim, é para manter a segurança pessoal do cordelista. Ele termina não falando muito pelo fato de correr perigo. Nos poucos livros de cordel que encontrei com esse tema, a primeira estrofe era algo assim: “Quem me contou essa história foi Joaquim José da Silva Xavier”. O cordelista transfere a responsabilidade para outra pessoa.
Quais são as armadilhas quando se pesquisa um tema como esse?
A grande armadilha é que estou trabalhando com uma situação de risco. Por isso sempre uso nomes fictícios. É uma maneira de proteger o informante e a mim. Outra armadilha é do ponto de vista epistemológico. Os pistoleiros são muito cativantes. Tentam explicar tudo dizendo que têm coragem, são vingadores, não concordam com o sistema político. Lembro-me de um que perguntou qual a diferença que eu via no trabalho dele em relação ao de um segurança do presidente: “Se aproxime do presidente e veja se não vão lhe matar”. Também dizem que se sentem honrados de dar melhores condições econômicas para sua família, ou para suas três famílias. Se não fossem pistoleiros, não teriam condições de fazer isso – embora alguns, nessa pistolagem difusa, matem por R$ 50, R$ 100. O fato é que são o elo fraco da relação. Costumo dizer que o pistoleiro é a ponta do iceberg, o que aparece. Por trás de tudo isso é que está todo o poder.

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