Livro de professor da Universidade de Harvard
revoluciona a teoria da seleção natural de Darwin ao mostrar que o grupo
pode alcançar muito mais sucesso quando atua de forma coletiva e em
benefício dos outros
Rachel Costa
Encontrar explicações convincentes para a origem e a evolução da vida
sempre foi uma obsessão para os cientistas. Tanto que, quando Charles
Darwin criou a teoria da seleção natural, na segunda metade do século
XIX, parecia ter encontrado a solução para o intrincado quebra-cabeça da
evolução da vida no planeta Terra. A competição constante, embora
muitas vezes silenciosa, entre os indivíduos, teria preservado as
melhores linhagens, afirmava o naturalista britânico. Assim, um ser vivo
com uma mutação favorável para a sobrevivência da espécie teria mais
chances de sobreviver e espalhar essa característica para as futuras
gerações. Após consecutivas linhagens, a tendência seria de que todos os
indivíduos fossem descendentes daquele com a boa mutação, e que quem
não a possuísse desaparecesse. Ao fim, sobreviveriam os mais fortes,
como interpretou o filósofo Herbert Spencer, no início do século XX –
ideia erroneamente atribuída a Darwin. Um século e meio depois, um
biólogo americano agita a comunidade científica internacional ao ousar
complementar a teoria da seleção darwinista. Segundo Edward Wilson, da
Universidade de Harvard, considerado o pai da sociobiologia, ganhador de
dois prêmios Pulitzer na categoria de não ficção e um dos mais
respeitados acadêmicos da atualidade, o processo evolutivo é mais
bem-sucedido em sociedades nas quais os indivíduos colaboram uns com os
outros para um objetivo comum. Assim, grupos de pessoas, empresas e até
países que agem pensando em benefício dos outros e de forma coletiva
alcançam mais sucesso, segundo o americano.
Ao cravar essa tese, defendida no recém-lançado “A Conquista Social da
Terra” (W.W. Norton & Company, 2012), uma compilação de pouco mais
de 300 páginas, Wilson pôs à prova o benefício de agir em causa própria,
presente na seleção individual de Darwin. O americano não contraria a
teoria darwinista, mas afirma que ela é insuficiente para se entender a
evolução, que aconteceria em múltiplos níveis – o individual, como
proposto por Darwin, e o de grupo. Afinal, se o mais importante era
fazer com que seus genes seguissem adiante, por que muitas vezes o
indivíduo era capaz de se sacrificar pelo outro? A luta constante pela
sobrevivência realmente explicou muita coisa, mas não foi capaz de
lançar luz sobre uma característica intrigante, observada pelo próprio
Darwin: o comportamento altruísta – chave da teoria de Wilson. “A
seleção individual é importante, mas não explica tudo”, disse à ISTOÉ o
diretor do centro de bem-estar da Escola de Medicina da Universidade de
Washington, nos Estados Unidos, Robert Cloninger.
A nova teoria da evolução de Wilson arrebatou não só a comunidade
científica como as mais importantes publicações internacionais. Os
jornais “The New York Times”, “The Wall Street Journal” e “The
Washington Post” e as revistas “Newsweek” e “New Yorker” são apenas
algumas das publicações que dedicaram páginas e páginas à chegada da
nova obra às prateleiras – sem contar as prestigiadas revistas
científicas “Nature” e “Scientific American”. O trabalho do acadêmico de
Harvard foi baseado nas espécies sociais, tais quais vários tipos de
abelhas, formigas e nós, humanos. As espécies sociais são 3% do total
dos animais do planeta, mas representam 50% de sua biomassa. Para
Wilson, só esse dado já seria suficiente para explicar o sucesso desses
grupos e constatar que a colaboração entre os indivíduos conta pontos
positivos na evolução. Algo semelhante já havia sido observado pelo
próprio Darwin no livro “A Evolução das Espécies”. Tentando explicar o
altruísmo, o naturalista britânico percebeu que, se esse comportamento
aparentemente não oferecia vantagem direta para o indivíduo, parecia ser
capaz de garantir um benefício ao grupo. Porém ainda não era claro por
que ser altruísta se o egoísmo parecia mais benéfico. “Os animais não
precisam competir sempre”, disse à ISTOÉ o professor de antropologia da
Universidade de Washington Robert Sussman, autor do livro “Origens da
Cooperação e do Altruísmo” (2009). “Quando a cooperação representa uma
vantagem para o grupo, os genes que a promovem são lançados à próxima
geração, favorecendo esse grupo em relação aos outros”, afirmou Wilson
em uma entrevista ao ensaísta científico Carl Zimmer. “Assim, a seleção
ocorre no nível do grupo, embora não deixe de acontecer no nível
individual.”
“A Conquista Social da Terra” surgiu para se fazer repensar a
importância da cooperação, em especial entre os seres humanos. Afinal,
se o sacrifício por um parente para a proteção dos genes, propalado pela
seleção por parentesco, faz sentido em comunidades de abelhas e de
formigas, falta-lhe complexidade para abarcar o ser humano, muitas vezes
capaz de se sacrificar por razões bem mais subjetivas, como crenças e
ideais. “Nos seres humanos há três aspectos que devem ser levados em
conta para explicar a evolução: o corpo físico, os pensamentos e a
psique”, afirma Robert Cloninger. “Darwin foca seu trabalho na evolução
do corpo, por isso a explicação fica incompleta.” Por ter consciência, a
pessoa é capaz de julgar se irá agir a favor ou contra o outro,
podendo, inclusive, basear essa decisão em atos que esse mesmo sujeito
praticou no passado. Alguém que sempre age de modo egoísta, por exemplo,
pode ser rejeitado pelo restante do grupo. “As manifestações de
generosidade nos seres humanos são diferentes e mais variadas que as
observadas em outros animais”, disse à ISTOÉ o biólogo Michael Wade, que
pesquisa evolução e comportamento na Universidade de Indiana, nos
Estados Unidos. Wade publicou, no fim de abril, um estudo mostrando que,
embora o altruísmo esteja presente em várias espécies, o mecanismo pelo
qual ele se dá varia. “Existem diferentes tipos de altruísmo, para
diferentes ambientes. É o ambiente que determina como ajudar seu
vizinho.”
Trabalhar em conjunto para um fim comum e, com isso, prosperar é
também agir com altruísmo. Numa bucólica vila encravada em pleno centro
da capital paulista, cerca de 100 pessoas colaboram umas com as outras
no âmbito profissional. São produtores culturais, fotógrafos,
jornalistas e programadores que formam a Casa da Cultura Digital, onde
várias pequenas empresas promovem um intercâmbio de trabalho e cooperam
mutuamente. Num ambiente em que não há espaço para a competição e as
despesas são divididas, o negócio cresce.
A Casa da Cultura Digital é um exemplo de modelo de sucesso para a
organização de empresas tendo como base o altruísmo. Para o americano
Steve Denning, autor de vários livros sobre liderança empresarial, a
teoria da evolução em grupo defendida pelo cientista ajuda a entender
essa e outras fórmulas vitoriosas. Outro exemplo seria o modo como a
americana Apple organiza suas equipes de trabalho, mantidas em separado e
muitas vezes proibidas de dialogar entre si. Para muitos, essa decisão
representa uma perda, na medida em que dificulta o compartilhamento de
ideias gestadas pelos times. Denning, porém, lança outro olhar a partir
do livro de Wilson. Se a colaboração se dá entre o próprio grupo, mas
não para outros grupos – que muitas vezes são entendidos como o inimigo
contra o qual se deve lutar –, caberia refletir sobre o seguinte ponto:
“Os ganhos ao se suprimir a concorrência interna entre as equipes não
compensariam as perdas de não deixá-las dialogar?”, escreveu, em um
artigo recém-publicado no site da revista americana “Forbes”.
Na neurociência, por exemplo, especialistas tentam identificar os
mecanismo cerebrais acionados quando se é generoso. “Seres humanos são
capazes de se sacrificar por um desconhecido completo ou por um ideal.
Isso não é visto em outras espécies”, afirma o neurocientista brasileiro
Jorge Moll, do instituto D’Or, no Rio de Janeiro. O pesquisador é
conhecido no meio acadêmico por seus estudos sobre a resposta cerebral
às ações altruístas. Ele e sua equipe mostraram, por meio de exames de
ressonância magnética, que ao se praticar ações altruístas são acionadas
as mesmas áreas do cérebro ligadas à recompensa. Como se, ao se doar
dinheiro, por exemplo, a sensação percebida fosse a mesma de quando se
ganha dinheiro. “Para o cérebro, o que temos é um sentimento de
recompensa, assim vale perder para ajudar o outro.” As amigas Flávia
Constant, Paula Saldanha e Letícia Verona decidiram se unir e agir por
pessoas que elas não conheciam diante da tragédia que matou mais de 900
pessoas na região serrana do Rio de Janeiro. Elas não moravam no local
nem perderam amigos ou parentes, mas, imbuídas de altruísmo, arregaçaram
as mangas e financiaram a construção de quatro casas no distrito de
Vieira, em Teresópolis, porque acharam que não podiam ficar alheias à
catástrofe. “Não tinha como não ajudar”, diz Letícia.
A generosidade presente no ato das três amigas do Rio de Janeiro também
pode ser explicada pela ação da ocitocina, um neurotransmissor muito
comum durante a amamentação e que age sobre a capacidade de empatia do
indivíduo. “Em experimentos, tem-se visto que os altos níveis de
ocitocina durante a lactação deixam tanto a mãe mais cuidadosa com a
prole quanto mais agressiva com quem é de fora”, diz Moll. Comportamento
que em muito lembra aquele descrito por Wilson para explicar a
colaboração entre o próprio grupo, mas não necessariamente com
indivíduos de outras comunidades.
Nos seres humanos, os modos como um grupo se relaciona com o outro
estão ainda sujeitos a fortes influências culturais. “No plano das
sociedades, temos características de individualismo e coletivismo e, no
plano individual, temos indivíduos mais voltados para a autonomia ou
mais interdependentes”, diz a pesquisadora Maria Lucia Seidl-de-Moura,
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ela e seu grupo têm buscado
compreender o modo como esses elementos são organizados para o
desenvolvimento das sociedades. “Não se pode falar que as mais
altruístas sejam mais evoluídas, mas é possível perceber que essa
característica está mais presente em algumas organizações sociais que em
outras”, diz, citando o exemplo do Japão, onde a estrutura social
aposta no coletivo e os indivíduos se desenvolvem sob uma cultura de
interdependência. Essa capacidade colaborativa se torna evidente em
situações como a vivida na ilha após o terremoto de 11 de março de 2011,
que exigiu a união do povo para a reconstrução do país. Outros países
famosos pela capacidade de se organizar e agir coletivamente em prol da
comunidade, quase de forma profissional, para assim alcançarem o bem
comum e progredirem, são os Estados Unidos e as sociedades nórdicas,
como a Noruega.
Especificamente no exemplo japonês está outro entendimento para o
altruísmo, distinto da biologia evolucionista, na qual o conceito é
aplicado para explicar a capacidade de um indivíduo abdicar de se
reproduzir em prol de outro. Aqui, o altruísmo é apreendido como uma
capacidade intrínseca do ser humano de ajudar o próximo, e que pode ser
desenvolvida. “Como se fosse uma bagagem dos bebês que pode ser
estimulada ao longo da infância e depois”, diz Maria Lúcia. Por isso,
muitos defendem a possibilidade de fortalecer esses laços entre as
pessoas.
Um exemplo é o trabalho “Ativando empatias”, iniciado no Canadá e que
começa a ser implementado no Brasil pela organização internacional
Ashoka. “Mapeamos no Brasil em torno de 15 empreendedores sociais para
implementar a ação no País”, diz Mônica de Roure, diretora da Ashoka
Brasil. A iniciativa, pensada para em um primeiro momento acontecer em
escolas, entende o olhar para o outro como uma espécie de antídoto capaz
de barrar um fenômeno cada vez mais comum: a violência perpetrada nos
casos de bullying. E também como motor para o desenvolvimento
comunitário. “Hoje temos claro que nosso sucesso depende do sucesso do
outro. Não adianta, por exemplo, eu trabalhar em uma empresa saudável se
ela está em uma comunidade doente. É preciso ter um olhar global para
seguirmos adiante”, afirma Rogério Arns, superintendente do Instituto
Camargo Corrêa e filho da criadora da Pastoral da Criança, Zilda Arns.
A nova teoria de evolução colocou a comunidade científica em polvorosa,
mas está longe de ser unanimidade. Wilson comprou uma briga ao contestar
a validade das tentativas mais bem aceitas pelos cientistas
contemporâneos para explicar a presença do altruísmo nas espécies, as
teorias de seleção por parentesco e a do gene egoísta (leia quadro) –
ambas fundadas na ideia de que o altruísmo, no fim, não passaria de uma
estratégia egoísta para se passar adiante os genes do indivíduo. Em
entrevista à ISTOÉ, Carl Zimmer diz que falta a Wilson testar a hipótese
que apresenta. Nigel Barber, nome de peso na biopsicologia e autor de
“Bondade em um Mundo Cruel: as Origens do Altruísmo” (tradução livre),
também critica o trabalho. “Insistir na ideia de seleção de grupo é
fazer pseudociência.” Para o cientista, ainda prevalece o conceito de
seleção por parentesco. Ainda não se sabe se a teoria de Wilson entrará
para a história como uma revolução à teoria da seleção natural. Mas ela
combina muito mais com o conceito de humanidade.
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